domingo, 29 de março de 2009

Eu nao tô morto, valeu?!

matéria publicada no jornal "O Sardinha" - Itajaí , 2004





Cheiro azedo de cachaça, roupas sujas, olhos vermelhos, testa franzida, barba por fazer. Com as mãos tremendo, ele se esforça para acender o cigarro. Volta e meia passa a mão na testa para enxugar o suor que escorre por todo o rosto. O sol está rachando e ele pede para tomar conta do carro de dois homens que estão saindo para pescar siri no Saco da Fazenda. De manhã é comum encontrá-lo caminhando no trecho entre o Atalaia e o centro da cidade. É o melhor horário para conversar com ele, quando está sóbrio. Quem não o conhece, o menospreza. Muitos têm medo, principalmente quando ele solta uma de suas gargalhadas escandalosas e inconfundíveis. Mas, por esses lados, é difícil alguém que não conheça o Nego Butte. “Todo mundo me conhece desde pequeninho aí. Às 5 da manhã os surfista tavam no mar e eu tava na praia correndo”.

Wilson Apolônio Caetano faz aniversário dia 15 de Junho, junto com a cidade de Itajaí. É conhecido por muitos como Butte, apelido de criança que nem ele lembra o porquê. Hoje está com 52 anos de idade, mas aparenta ser bem mais jovem. “Eu podia estar melhor”, diz, batendo a mão na barriga. “No passado jogava bola. Fui descobridor da praia Brava. Fazia quatro horas de corrida, fiz corrida até floripa”. Já jogou no time do Cometa, Parque Dom Bosco e Estiva. Butte e seu pai eram empregados no estádio de futebol do Marcílio Dias. Certo dia faltou um jogador para completar o treino e o chamaram para jogar. “Eles sabiam que eu jogava amador, jogava quando criança no cascalho, quando acabou o treino deram o título pra mim”. A rotina era jogar e depois ir para o bar tomar uns tragos.

Wilson conta que começou a tomar cachaça com treze anos. Na época, jogava de goleiro, quando começou a aparecer muita gente para a mesma posição – “tinha o marimbondo, nego gato, pinduca...” – e ele resolveu virar lateral direito. “Eu matava, matava mesmo, às vezes passava quatro ponteira esquerda. Eu sou o cara. Vou te mostrar uma coisa pra ti vê quem sou e pra não falar que sou mentiroso” - Ele tira do bolso uma matéria de jornal com o título “Atalaia Esporte Clube foi campeão em 1985”. No texto, o comentário confirma: “Nego Butte na lateral era simplesmente fantástico”.

A família vem de Camboriú, lá do Bairro Macacos. “Nós ia a pé, da vila de Camboriú até lá dentro, dava três horas de viagem - 12 quilômetros – era puxado. Um dia nós fomos num casamento a pé, eu, meu pai e minha mãe; deu uma trovoada....”. Faz mais de 15 anos que ele não vai ao bairro. A mãe morreu há doze anos. Na casa, hoje, moram o pai e a irmã. De vez em quando ele vai lá, mas geralmente dorme no Atalaia. A irmã não gosta quando ele aparece de mãos abanando. Está há quatro meses parado e diz que "graças a Deus" nunca faltou dinheiro. “Tem dia que eu não como, segunda-feira comi dois pãozinho só”.
Além de jogar futebol, Wilson teve diversos empregos. Foi vigia da Caixa Econômica e do Bradesco, durante cinco anos foi caseiro de uma casa atrás do Marambaia – “ Tinha uma lareira, eu digo que é lareira, mas era uma churrasqueira. Eu cozinhava marisco e fazia rango adoidado. Cuidava, capinava, roçava”. Num prédio em Cabeçudas, Butte começou como servente e depois foi zelador. “Lá em Cabeçudas sou considerado”. Também trabalhou no bolão da Sociedade Guarani – “Juntava as bola, depois era festa, só alegria. Comia, tomava altas gelada, whisky também. Sempre fui malandrinho, cachaceiro”.

Nego Butte está sempre por aí, na rua, nos bares. Conhece muita gente. Tem vezes que ele incomoda, quando está muito chapado. “Eu não gosto de atrito, eu gosto mais de paz. Uma vez o garçom veio e deu com o copo aqui, assim. Eu perdi um dente de bobeira. Meu dia-a-dia é daqui pra lá, de lá pra cá, tomo uma cervejinha...vou lá no bar da vó...O que me faltou foi um cara que desse um apoio, tipo que nem tem hoje em dia, um psicólogo, ou um cara que desse uma idéia. Eu tenho que dá um pique aí nessa praia pra tirar essa água do corpo. Eu tenho condição de fazer isso, mas só que aí eu chapo- hoje tem um negocinho lá, uma cervejinha...”

Apesar de tudo, ele ainda tem sonhos. "A turma vê eu com uma latinha na mão e diz: pô, esse negão jogava uma bola – todo mundo fala, eles tão abrindo um olho e fechando o outro, que eu não tô morto ainda, valeu? Meu sonho é jogar na Alemanha, no lugar do Cafu, em 2006. Como diz o Galvão Bueno: A gente se vê na Globo.”

Uma Mulher à frente do tempo

matéria publicada no jornal "O Sardinha" - Itajaí, 2004




Ela nasceu em Luís Alves em 30 de abril de 1917. Apoiando os braços enrugados sobre o balcão, conta histórias dos tempos da segunda guerra mundial como se tivesse sido ontem. Histórias que ouvimos dos professores e lemos em livros, que parecem muito distantes e, às vezes, até irreais. Mas, a conversa com Olga traz esse passado distante para o agora, quase palpável.

Olga Marangoni Waltrich, de 87 anos, é uma mulher cheia de vida. É a dona do Bar da Vó, também chamado Ponto Chic, que fica no centro de Itajaí, bem próximo ao mercado público. Abre todos os dias, das 8h às 17h. “Mais vale um covarde vivo que um valente morto. Prevenir o acidente é dever de todos”, justifica ela, por fechar tão cedo.

Entre as histórias que Olga conta e reconta, com muito gosto, está a de uma molecagem que fez em Itajaí. “Meu marido estava em Porto Alegre, eu peguei o carro e fui fazer bagunça”. À noite, com as ruas vazias, ela juntou a criançada e, juntas, trocaram as placas dos comércios. Na casa da parteira colocou a placa do açougue do Germano, a Casa Jaraguá virou conserto de sapato, e por aí vai. No dia seguinte a parteira deu queixa na polícia e Olga, com a consciência pesada, foi se entregar. O delegado não acreditou nela.

Morou 26 anos em São Paulo onde trabalhou de enfermeira, acompanhando idosos. Têm inúmeras cartas de recomendação de seus clientes, algumas na parede do bar, outras atrás do balcão. Certa vez, resolveu levar sua paciente para a praia do Guarujá. Como o motorista não tinha muita prática na estrada, pediu para usar o motorista de uma conhecida. Na estrada foram parados por alta velocidade. Olga não perdeu tempo. Falou para a paciente deitar em seu colo e, quando o guarda veio, disse que estavam com pressa para ir ao hospital, pois a senhora estava mal. Mostrou-lhe os documentos de enfermeira e o truque deu tão certo que foram escoltados pelo carro policial até o hospital de Santos.

Na década de 50 o marido tinha a loja Casa de Queimas onde ela vendia roupas que trazia de São Paulo. Na volta de uma viagem trouxe, em sua valise, escondidas nas roupas íntimas, duas latas de pedras de isqueiro vindas da Argentina. Foi detida em São Miguel e as latas apreendidas como contrabando. “Passei um telegrama para Dr. Nunes, na época não tinha telefone”. O telegrama foi repassado para Ademar de Barros, homem do governo, que respondeu: “Solta-me la chapa deste carro” conta ela, com seu sotaque italiano. Foi liberada na manhã seguinte e seguiu viagem. Em Itajaí foi recebida por Irineu Bornhausen de braços abertos.

Ao contar essas e outras histórias, Olga parece uma criança, orgulhosa de suas travessuras. Mas ela não fala só dessas coisas. Fala muito sobre política e está bem a par dos acontecimentos de Itajaí e do Brasil. Expressa claro desgosto por Bush e suas atitudes. Diz que o ser humano tem que ter quatro qualidades: ser honesto, humano, inteligente e valente.

Olga foi a primeira mulher em Itajaí a ter um carro. Era um modelo Ramona, ano 28, comprado em 1946 de uma viúva alemã de Indaial. Custou 800 mil réis. “Como vou dirigir, como faço? Eu sabia muito bem andar de carroça ou de trolinho”, pensou. O marido a ensinou: “Não tinha nada de segredo, o pé de fazê-lo ir, o pé para brecar, chave ligada, ia lá fora, dava manivela - trum trum trum - até que pegava, sentava dentro dele e ia andando... na cidade tinha o carro do prefeito, do posto de saúde e o meu”. Seu pai a repreendia dizendo que mulher que dirige é mulher vulgar, banal. “Olhei para ele, me rasei os olhos e continuei a dirigir”.

Não se arrepende de nada. “Trabalhei muito e se for para fazer tudo de novo, eu faço". Hoje vive em paz. "Não vou a lugar nenhum, não saio de casa. Sou muito católica, mas nem vou numa missa, não saio sequer para fazer compras. Tenho uma pequena aposentadoria e quem recolhe é meu sobrinho Marangoni”. Sem travessura, agora, a vida de Olga é dividida entre o trabalho no bar e os cuidados com sua filha Letícia, a “Ticinha”, que teve pneumonia aos sete anos e ficou incapacitada.

“Tenho freguesia sólida, mas o mal não tem letreiro na testa. Continuo a trabalhar mais um tempo se Deus me permitir, e sei que ele vai. Quando ele tirar minha filha, que faça de mim o que bem entender, porque sem eu ela não vive. E eu não vivo sem ela. É uma amiga, uma companheira. Sete e meia mais tardar já lhe aplico medicina e a ponho para dormir. Três ou quatro vezes por noite levanto, tiro ela, levo... cinco e meia estou de pé, faço café, adianto meu almoço, fresquinho, cada dia aquele pouquinho, e vivo. Estou muito contente assim como estou, sou feliz, contente com minha freguesia, meus filhos que me chamam de vó ou mãe. É um carinho. Ninguém aqui me dê uma piada ou queira me maltratar porque o próprio freguês não permite, ele já toma a frente". Assim é!!!

quinta-feira, 26 de março de 2009

flickr

para ver mais fotos: http://www.flickr.com/photos/thomasbisinger/

segunda-feira, 23 de março de 2009

Livro: Minhas Memórias de África, uma viagem pelo caminho interior


Capa do livro


Richard voando no deserto Namib - Namibia


Deadvlei, deserto Namib - Namibia


Cabelos e Moramas, Deserto do Kalahari - Botsuana


Dança Sagrada bosquimana, D'kar, Botsuana


O menino e o barco, Vilankulo - Moçambique


Arrastão, Vilankulo - Moçambique

Apresentação: Minhas Memórias da África é um misto de crônica, reportagem, poesia e sentimentos à flor da pele. Um olhar brasileiro sobre o que Thomas viu, viveu e sentiu, em suas andanças pelo sul da África, carregado de perplexidades e paixão - uma espécie de diário de viagem, no qual ele vai contando de seus encontros, desencontros, ódios e amores.

O texto e as fotos nos carregam pela África do Sul, Zimbábue, Namíbia, Botsuana, Lesotho e Moçambique, numa jornada que ultrapassa as estradas comuns e se embrenha no mundo interior de quem observa e escreve. No trabalho, Thomas revela o cotidiano dos viventes do sul da África, o trabalho, a dança, a alegria, a vida mesma, seu passar incessante e inexorável. Também desvela, de forma singular, uma chaga aberta, ferida sangrante, praticamente invisível aos olhos ocidentais.

Minhas Memórias de África é, então, muito mais do que o relato textual e fotográfico de um viajante. É um retrato assombrado de um longínquo lugar, muito amado, um diálogo amoroso entre um homem, um universo distante e um povo que, a despeito de todas as tentativas de destruição impetradas pelos colonizadores, ainda está de pé, resistindo, do seu jeito. Não há no texto nenhum juízo de valor. Só o relato e as perguntas... Muitas perguntas... Mas, como se diz, no bom jornalismo, libertador, mais valem as boas perguntas. Já as respostas, estas cabem ao leitor...

Elaine Tavares

O livro pode ser adquirido em livrarias ou em contato direto com o autor: thomasbisinger@gmail.com